Prosa





ROMANCES


     “Não há culpas, há consequências”, me falava a senhora de vestido vermelho, na calma noturna de um rio. Não tivesse ela a mais plena das razões, diria que a culpada fora a decisão de seu amigo escritor. Contava-me ela que Ramalho – eis o nome de seu amigo – possuía enorme talento no mundo das letras, embora desconhecido do grande público. Dono de um estilo conciso, quando se dedicava à prosa nunca ultrapassava a três páginas. Gostava de registrar cenas do cotidiano, pois acreditava ser essa a sua missão neste planeta. Falava pouco, observava muito.

     Um dia decidiu escrever um romance de 490 páginas. Seria uma história de amor com princípio, meio e fim bem definidos. Algo até água com açúcar ou talvez uma obra revolucionária que o colocaria entre os principais autores do país. O mais importante era ter 490 páginas.

     Ela parou a história e ficou olhando o rio. Também não disse nada. “Há muitos textos em um silêncio”, já me dissera antes. Perguntei a mim mesmo como um escritor tão conciso conseguiria escrever um romance de tamanhas páginas. Pergunta arrastada por longos minutos, até a senhora continuar a história.

     Ramalho contaria o romance de Julian e Cris, nomes que lhe apareceram em sonho, na forma de um desafio. Ao chegar em casa, Ramalho encontrou um senhor sentado em frente ao computador, ligado no Word. Disse-lhe o senhor:

     - O computador já está pronto. Resta-lhe escrever um romance contando a história de Julian e ela.
     - Eu? – respondeu-lhe Ramalho. Escrever um romance? Não. Sou conciso demais para escrever romances.
     - É necessário contar a história de Julian e ela.
     - Tudo bem. Eu narro a história em um conto.
     - Conto, não! Nada com menos de 400 páginas.
     - Você é louco. Além do mais, nunca ouvi falar em Julian.

      Senhor levantou-se da cadeira e com voz firme, encarou Ramalho:
     - A história já está pronta. Resta apenas ser escrita. E você a narrará. Sente-se. Inicie o trabalho.
     - Não! Nada tenho contra longos romances. Já li inúmeros. Desculpe-me lembrá-lo, mas gosto de cenas banais do cotidiano e tenho um estilo bastante conciso.
     - O que não o impedirá – cortou o senhor – de escrever um romance falando de Julian e ela. Deseja um prazo?

     Ramalho gostou da pergunta. Seria uma forma de livrar-se daquele insistente e irritante senhor. Pediu sete anos para escrever o romance.

     - Negócio fechado. Você terá sete anos para escrever o romance.
     - Vou tentar. Prometo.
     - Então, sente-se. Comece. É urgente a história.

     Ramalho sentou-se e escreveu:
     “História de Amor entre Julian e...”

     - Quem é ela? – gritou Ramalho ao senhor que já sumia no horizonte.
     - Cris!

     Ouvindo tal resposta, Ramalho abriu os olhos. Ainda era madrugada.

     - Então feche os olhos – disse-lhe, um segundo antes de beijá-la longamente. Beijo sabor de reticências, já que a história do amigo escritor haveria de continuar e, com ela, a de Julian e Cris.

     Nos primeiros dias, Ramalho não levou a sério o sonho, mas depois percebeu que nos lugares por onde passava, começava naturalmente a procurar Julian e Cris. Certa manhã foi à feira só para ficar observando. Quem sabe ambos não a freqüentariam? À noite, caminhava pelas ruas à procura do casal. Mas não os encontrava.

     Por diversas vezes sentava-se frente ao Word. Nenhuma linha. Nada sabia de Julian e Cris. Nada.

     O tempo passou. Certa noite, Ramalho acordou interrogativo. Qual a próxima letra após o “n” de Julian? Seria o protagonista masculino ou feminino? E Cris? Seria Cristiano? Cristiane? Cristina? Cristóvão? Foram tantas combinações que Ramalho escreveu muitas histórias antes do dia amanhecer. Todas concisas, não passavam de três páginas. Entretanto, decididamente, aquelas anotações dariam origem ao romance de 490 páginas.

     Poucos dias e terminara um romance. Definira quem era Julian. Definira quem era Cris. Narrou suas histórias. Início, meio e fim bem definidos. Estava pronto o romance de Julian e Cris.

     - Mas...
     - O quê?!? – perguntei-lhe.
     - O romance não tinha 490 páginas. Mal chegava a 200.
     - E então?
     - Para Ramalho, o romance estava incompleto.
     - Mas... e a história em si?
     - Completa.

     Silêncio.
     Não resisti. Perguntei-lhe:

     - O que aconteceu?
     - Ramalho sentou-se em frente ao computador e escreveu mais três páginas. Depois mais duas ou uma. E assim ficou durante meses. Não escreveu mais nada, nem um verso, nem um bilhete o lembrando de uma ideia. Não escreveu mais nada que não falasse de Julian e Cris.

     - Assim, um belo dia, enfim, alcançou as 490 páginas, certo?
     - Errado! Ramalho jamais alcançou e jamais alcançará. Cada novo capítulo que Ramalho escreve não se encaixa na história que já escreveu. Percebe? Ele insiste em acrescentar capítulos em um romance que já se acabou há muito tempo.

     Percebi que de seus olhos descia uma lágrima. Aparei a lágrima e a passei em meus lábios. Ela concluiu: Há mais de 70 meses meu amigo não escreve mais nada. Teima em acrescentar histórias românticas onde não há romance. A semear frutos e flores onde o terreno é árido. A última vez que o vi, vagamente lembrava o vigor que eu tanto admirei nele.

     Dizendo isso, tocou seus lábios nos meus e pediu para que eu, embora fosse casado, escrevesse sobre os nossos toques. Ofereceu-me seu seio direito, enquanto afagava meus cabelos. Entretanto, foi a história de Julian e Cris que mais me envolveu.



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..... (do livro “A Humana Casa das Oliveiras”, 2007) ...........
........................................... (Ji-Paraná/RO) .....
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O VIGIA E O PÁSSARO



Abriu o envelope. Leu no papel timbrado:

“Você está cansado, Tomé. A idade também lhe pesa aos ombros. Por isso, estamos comunicando sua aposentadoria a partir dessa data. Você receberá, claro, tudo o que lhe é de direito para um final de vida tranquila e feliz. Afinal, embora o seu livro de registro ainda esteja em branco, reconhecemos o seu esforço ao longo das seis décadas em que trabalhou conosco.”

Abaixo, a data atual e as assinaturas da diretoria.


***

            Quando Tomé completou dez anos de idade, descobriram a sua missão: ser vigia. No mesmo dia o contrataram. Caberia ao vigia, explicaram, registrar em um livro todos os fatos considerados estranhos naquela cidade e região. Há três anos ninguém ocupava tal cargo, fato muito perigoso. Um deslize dessa natureza poderia derrubar qualquer administração pública. E Tomé, durante dois na viveu em casa com a família. Ao perceber que nada de estranho acontecera até àquela data, decidiu viajar para as cidades vizinhas. Ouviria a população, cada uma delas, como já fizera com a sua. Certo estava de inaugurar o seu livro de registro.

            Assim, entrou na primeira cidade e nela ficou por nove meses. Desistiu. Encaminhou-se para a segunda, onde, ouvira dizer – há algumas semanas um homem de nome Atlas aceitara o desafio de atravessar quarenta e um rios em quinze dias. Quando chegou à cidade, perguntou ao primeiro senhor:

            - Onde encontrarei Atlas, o nadador?
            - Siga até o cais. É fácil vê-lo. Ainda está atravessando o primeiro rio.
            - A quantos dias?
            - Acima de quinze. É fácil reconhecê-lo. Podemos sentir a sua alegria em ter aceitado o desafio.

            Tomé agradeceu. Já ia seguir rumo ao cais, quando lembrou de perguntar:

            - Senhor, fatos estranhos acontecem nesta cidade?
            - Não – respondeu desconsolado  o homem. Nada além do tédio.
            - O que não é nenhuma novidade. Adeus, e obrigado.

            Ficou apenas alguns dias. Seu livro ainda em branco.

            A próxima cidade o recebeu com um outdoor das Lojas Buendia, alertando-o sobre as propagandas enganosas, como as do letreiro “A terra é redonda como uma laranja”.  Após o outdoor a cidade estava em festa. O povo nas ruas dançava, cantava, contava piadas, se abraçava. Alguns casais aproveitavam para trocarem beijos em pleno dia.

            - Qual o motivo da festa? – perguntou a um rapaz de nome Murilo.
            - Estamos aguardando o mensageiro do rei.

            Durante algumas semanas nada mais se fez naquela cidade a não ser esperar o mensageiro do rei. Tomé também esperou. Enfim, o ilustre personagem apareceu. Murilo, já amigo de Tomé, assim lhe explicou.

            - É o senhor Úber, montado no cavalo verde. Há anos saiu de sua cidade para entregar o cavalo ao rei. Até hoje prossegue o seu caminho, embora sem saber qual seja o rei e onde seja o reinado. O povo faz festa para recebê-lo. Torce para que o cavalo chegue ao rei. O rei que ninguém vê e nem sabe onde mora. Se você procura algo de estranho, amigo Tomé, não o encontrará aqui. Todos não fazem mais que viver o óbvio.

            Tão logo chegou à quarta cidade, quebrou o pé. Voltou para casa, onde entre cirurgia, repouso e fisioterapia, passou alguns anos. Mesmo assim, não abandonou a profissão. Logo todas as cidades da jurisdição de Tomé ficaram sabendo do acidente e, havendo algum fato estranho, de imediato o comunicariam. Em vão, apesar dos diários telefonemas que o vigia dava.

            No dia da afirmação médica de que seu estado de saúde voltara a ser perfeito, partiu imediatamente para uma cidade ainda não visitada. Voltou desanimado. Era apenas um fato banal, indigno de registro. Constava de um caixeiro-viajante que, após cinco anos de dedicação ferrenha ao seu trabalho, acordara e percebera: havia se transformado em uma barata.


***

            Ao longo de algumas décadas, eis a vida de Tomé, que hoje se aposenta. Funcionário exemplar, abriu mão de todas as férias para nenhum fato passar despercebido. Como homem, se recusou a constituir família para não dividir a atenção com coisas contrárias a sua missão. Septagenário, guarda uma lembrança. Agora, debruçado ao livro sem registro, volta o seu pensamento quando tinha apenas oito anos de idade.

            Assistia televisão quando ouviu uma balbúrdia geral na rua. Saiu para ver o que era. Somente os homens mais curiosos ousavam se aproximar. As mães, sempre preocupadas, colocavam seus filhos para dentro de casa e com eles se fechavam. Pouquíssimos minutos e chegaram imprensa, eclesiásticos, corpo de bombeiros, polícia e homens do governo. Agitação geral. Ouviu um grito:

            - Menino, saia daí. Rápido. Saia.

            Foi então que viu. Um bicho esquisito sentado na árvore em frente  a sua casa. Espantaram o bicho. Ele voou e nunca mais foi visto. Ninguém mais comentou o incidente. Nada foi registrado, pois ninguém ocupava o cargo de vigia. E não havendo registro, o fato ficou como nunca acontecido. Ah, tivesse sido contratado dois anos antes e o livro teria ao menos um registro e todos saberiam: um dia sua cidade fora visitado por um passarinho.








NUVENS DE ÍCARO

Ícaro esperou décadas para que alguém lhe abrisse a porta da gaiola. Queria voar. Visitar as mais altas nuvens. Sabia, porém, que sua falta de treino o limitaria a poucos metros. Isso não o desconsolava. Começaria com pequenos vôos. O importante era readquirir a prática do verbo voar. Em outro instante sim, visitaria a nuvem mais alta.

Era dia de sol quando Ícaro acordou e percebeu que alguém abrira a gaiola. Quem a abriu?, questionou-se. Não importava. Era a sua primeira chance de voltar a voar. Era o seu primeiro passo para visitar as nuvens. Voou. Alguns metros. Novos metros. Arriscou tímidas acrobacias. Teve receio. Mas a ousadia trouxe-lhe o gosto da liberdade.

Quis já visitar as nuvens. Tentou. Caiu. Desesperadamente caiu. Pouco se machucou. Afinal, a ousadia era bem maior que sua altura em relação à terra. Entristecido, voltou à gaiola. Cadeou a porta. Jogou a chave fora. Olhou as nuvens. Baixou a cabeça. Dividia-se em querer voar e querer esquecer que existe vôo.

Outras décadas se passaram e Ícaro continuou na gaiola. Preso, lembrava da tentativa de voo. De seu ensaio acrobático. Do voo. Ícaro lembrava do voo. O voo, mera tentativa. O voo. Ícaro às vezes olhava as nuvens e lembrava  do voo. Da mera tentativa de voo. Do voo que terminara em queda. Ícaro, após décadas, lembrou-se da queda.

E descobriu. Era isto. A queda. Por que não lembrara antes dela? Ah, tão bobo em passar tanto tempo sem lembrar da queda. Um sabor até então desconhecido invadiu a gaiola. Ícaro retirou seu sapato e tocou o chão. O chão tinha gosto de terra. O mesmo gosto que durante milésimos de segundos seu corpo sentiu um dia após uma queda.

Ícaro tocou a terra. Sentindo-se outro, banhou-se com ela. Amou. Então, pegou a gaiola com os dedos e a colocou na palma de sua mão. Sorriu. Com os pés na terra, Ícaro descobriu que, agora sim, iniciava sua tão almejada visita às nuvens.





A CASA DAS OLIVEIRAS

Sabia que ela estava ali. Ainda que estivesse sozinho, ela estaria ali. Por isso, diversas vezes murmurava: Desculpe-me, se você não entender. Por isso, murmurou mais uma vez a frase enquanto sentia que não passaria daquela noite a prática de seu intento. Desculpe-me, espero que me compreenda - dizia, sabendo que ela estava ali. Ah, se não estivesse, não precisaria se justificar tanto. Tanto.
     
Os vizinhos da casa começavam a se despedir do animado bate-papo. Conversações noturnas, costumeiras, embaixo das oliveiras. Logo a casa estaria sozinha. Durante anos observara a casa. Seus moradores. Seus vizinhos. Seus cotidianos. Esperara tanto. Não, não passaria de hoje a prática de seu intento. Nunca a casa lhe estivera tão acessível.

Antes das oliveiras crescerem era bem mais difícil. Primeiro, construíram uma muralha em torno da casa. A casa tornou-se invisível. Correram boatos de que a casa, na verdade, não passaria de lenda. Quando destruíram o grande muro, construíram um enorme fosso ao redor da casa. A casa tornou-se ilha.   Quando as pontes chegaram, resolveram soterrar o fosso. Cercaram a casa com arame farpado. Passaram-se anos.

Quando por entre os arames surgiram as primeiras oliveiras, trouxeram os cães. Mas os cães nada puderam fazer ante o crescimento das oliveiras e mudaram de endereço. Vieram os vizinhos. E, enquanto conversavam, encontravam pequenos pedaços de arame farpado. Cuidadosamente os retirava do local. Fazem isso até hoje.

Agora ele estava ali. Pela primeira vez sentira que, enfim, a casa lhe era acessível. Não perderia essa oportunidade. Quiçá fosse a única. Não tentou abrir o portão, pois havia o cadeado. Pulou o muro. Não tentou abrir a porta, pois havia o chavear. Caminhou à mais frágil das janelas. Com um pé de cabra, teve acesso ao interior da casa.

Chegou à cozinha após ter passado por vários móveis, eletrodomésticos, quadros clássicos e contemporâneos, livros e um longo tapete. Abriu a porta da geladeira. Havia doces. Doces dos mais variados tipos. Doces de sabores antigos. Doces de sabores novos. Maravilhou-se. Colocou a maior parte dos doces sobre uma imensa mesa coberta por uma toalha cor de terra. Vivenciou o banquete usando todos os órgãos de seus sentidos.

Mas o intento ainda não terminara. Caminhou até um dos quartos. Teve dificuldade de abrir a porta. Chegou a temer a vinda do amanhecer e com ele a chegada dos donos da casa das oliveiras, que, ao perceberem-se invadidos, com certeza o condenariam. Todavia, abriu a porta. A cama, o guarda-roupa, a televisão, o videocassete. O quadro romântico na parede, a coleção de cds, o porta-joias. Nada disso o interessava.

Sabia o que queria. Procurou. Achou. Seus olhos, acompanhando todo o seu ser, se maravilharam. Achou-o no canto da parede. Como era bonito. Mais belo do que imaginara. O berço ali, diante de si. Pronto para o receber. Nele entrou. Nele adormeceu. Em paz. Estivesse ela ali, geograficamente presente, e dele ouviria: Palas, jura que durante todo esse tempo, você não percebeu que por trás desta couraça há um menino feito de doces e de berço?!?







Um comentário:

  1. Do livro "A Humana Casa das Oliveiras", de Carlos Reis (FCJP, Ji-Paraná/RO, 2007)

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